quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Nvula


Do céu cinzento que se desfaz
Caem fortes bátegas tropicais
Alimentando minados solos férteis
Onde as mulheres zungam fuba e peixe nos canais

Nesta Quadra de ilusões desiguais,
Nas intermináveis serpentinas o mangue não cede 
Por todo o lado se ouvem despautérios matinais
Todos  procuram a tença que lhes tire a sede

Desesperados fogem pela rua
Duma paz que não se encontra
Pequena palavra que se encontra toda nua
Do lado de lá fitam a enorme montra

Embarcam em Kinshasa e Boma
Aqueles a quem a míngua não permite discernir
O sonho de encontrar esta terra 
Até serem repatriados sem tugir!


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Paquete Funchal



Os passos tropegos do Comandante são seguidos pelas objetivas das cameras de televisão. Foi o último a descer. A situação tornara-se insustentável! Quatro corajosos marinheiros permaneceram amarrados durante dois anos a uma doca inóspita e sem rumo traçado. A certeza dum fim anunciado pela ausência duma resposta cobardemente adiada pelo armador. Finalmente lá apareceu com ar cadavérico a anunciar que os sacrifícios também se alargam aos donos que não recebem ordenado. Foram quatro meses sem pagamentos e dois anos atracados a uma vida que se enterrou no Cais da Matinha.



Por onde antes saíam animados turistas tostados zarpam agora os quatro últimos marinheiros do Funchal. O esplendor e brilho da chegada contrastam com a ferrugem e o cinzento que agora são visiveis neste monstro adormecido. Sem água nem energia para dar vida aos candeeiros de lustre que outrora iluminavam as salas de dança. É um fado que se repete ... fechar, encerrar, terminar ... está tudo a colocar a aldraba e depois quem vai novamente abrir os horizontes desta gente?

domingo, 16 de setembro de 2012

Desgraça - J.M. Coetzee

Não posso esquecer este dia, pensa ele, deitado ao lado dela, os dois extenuados. Depois da carne jovem e doce de Melanie Isaacs, é a isto que eu venho parar. É a isto que tenho de começar a habituar-me, a isto e a pior.

sábado, 8 de setembro de 2012

As touradas (por J.M. Coetzee)

"A tourada, parece-me, dá-nos uma pista. Matem o animal à vontade, dizem eles, mas transformem isso numa competição, num ritual, e louvem a força e a coragem do adversário. Comam-no também, depois de o vencerem, para absorverem essa força e essa coragem. Olhem-no nos olhos antes de o matar e, depois, agradeçam-lhe. Celebrem-no em canções.
Chamamos a isto primitivismo. Esta atitude é fácil de criticar, de censurar. É profundamente masculina, viril. Desconfiamos das suas ramificações politicas, mas, depois de tudo dito e feito, há uma certa atração que permanece a um nivel ético.
Contudo, também é inviável. Os esforços dos matadores ou dos caçadores de veados, armados de arcos e setas, não dão para alimentar quatro mil milhoes de pessoas. Já somos muitos. Já não há tempo para respeitar nem para louvar todos os animais necessários à nossa alimentação. Precisamos de fábricas de morte; precisamos de unidades de criação de gado. Chicago mostrou-nos o que devia ser feito; foi com os currais de animais de abate de Chicago que os Nazis aprenderam a processar os corpos."

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A leitura para os africanos por J.M. Coetzee



... "A leitura não é um entretenimento tipicamente africano. A música sim; a dança sim; a comida sim; a fala sim ... e abundante. Mas a leitura não, e especialmente a leitura de grandes romances. A leitura sempre foi considerada por nós, africanos, como algo de estranhamente solitário. Faz-nos sentir incomodados. Quando nós, africanos, visitamos as grandes cidades europeias, como Paris ou Londres, reparamos como as pessoas, nos comboios, tiram das sacas ou dos bolsos livros e se retiram para mundos solitários. Sempre que aparece um livro é como se erguessem um aviso: Deixem-me em paz, estou a ler. O que estou a ler é mais interessante do que vocês.
Bem, em África, não somos assim. Não gostamos de nos isolar dos outros para nos retirarmos para mundos só nossos. A África é um continente onde as pessoas gostam de partilhar coisas. Ler um livro sozinho, não é partilhar. É como comer sozinho ou falar sozinho. Não somos  assim. Achamos que é um bocado tonto." ...

Citando Emmanuel Egudu

terça-feira, 22 de maio de 2012

ser religioso! valter hugo mãe

ser religioso é desenvolver uma mariquice no espírito. um medo pelo que não se vê, como ter medo do escuro porque o bicho papão pode estar à espreita para nos puxar os cabelos, esperar por deus é como esperar pelo peter pan e querer que traga a fada sininho com a sua mini-saia erótica tão desadequada à ingenuidade das crianças, o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Sinais de Fogo (Jorge de Sena)

          A diferença que havia entre ela e a Mercedes era tão grande! Como a que ia de uma escada escura até ao mar largo em frente à balaustrada. Não escreveria. Tudo acabaria em silêncio, eu não lhe apareceria mais. Ela não tivera para mim a mínima importância. E era uma rapariga que, mal me conhecendo, quase se me entregara. E eu mal a conhecia. Senti um baque surdo. E a Mercedes, eu conhecia-a melhor? Noiva do Almeida, não se abandonara aos meus braços e aos meus beijos? Não os procurava até? Porque afinal gostava de mim, e porque eu gostava dela. Ao ver-me, ela percebera que de mim é que gostava. Novamente ouvi o Macedo dizendo as suas tolices. Sim ... mas era de mim que ela gostava. E desci para o jantar.

sábado, 7 de abril de 2012

Roubalheira (A Mina de Diamantes)

A diferença que há entre a Europa e a América é que na América a roubalheira é organizada e aqui, não digo desorganizada, mas no estado de inorgânica. Na América tudo molha a sua sopa: o ministro, o vereador, o mestre-de-obras, o dono do hotel, o merceeiro, o engraxate. É o círculo napolitano dos comilões. Um mete a mão no bolso do vizinho, o vizinho no bolso do parceiro mais próximo, aquele no que está a seguir, assim por diante. Fechado o circuito, todos roubaram, portanto ninguém ficou roubado. Na Europa não. Nem sempre rouba o ministro, mas deixa roubar o secretário. Rouba o senador ou ajuda a roubar; não rouba o magistrado, mas fecha os olhos. Não rouba o chefe, mas permite que roube o manga-de-alpaca; rouba o estalajadeiro; rouba, se pode, o criado de mesa; rouba o engraxador ...

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Democracia (Rimbaud)

A bandeira reflecte a paisagem imunda e a nossa gíria abafa o som do tambor.
Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as revoltas lógicas.
Às terras aromáticas e dóceis! - ao serviço das mais monstruosas explorações industriais ou militares.
Até mais ver!, não importa onde. Recrutas do próprio querer, teremos a filosofia feroz; inaptos para a ciência, esgotadospara o conforto; e que os outros rebentem. Este é o caminho. Em frente, marcha!

quinta-feira, 29 de março de 2012

Aulo Gélio sobre Séneca


Já estou a ficar cansado de Séneca. Ache quem quiser que Séneca merece ser lido e estudado pelos jovens, ele que achou por bem comparar a gravidade e o tom dos autores arcaicos com os leitos de Sotérico, isto é, com moveis destituidos de beleza, já passados de moda, monos de que ninguém gosta. Apesar de tudo, vale a pena citar alguma coisa, pouca, de Séneca digna de menção, como é aquele seu excelente dito dirigido a um avarento, ambicioso até mais não, atormentado pela sede de dinheiro: "Que importam os bens que possuis se muito mais numerosos são aqueles que não possuis?"



segunda-feira, 26 de março de 2012

Cobra (Herberto Helder)


Eu iria até ao centro onde flutua a constelação
                 da dança, com as labaredas
                 a mergulhar
em baixo. Ou à frente, os relâmpagos do corpo culminando.
Toco-lhe as campânulas quando os balcões
                 se debruçam na atmosfera,
                 e as colinas irradiam com os astros
                 cravados, e desorientam
os olhos. A minha idade escapa-se de um lado
para o outro, sob os dedos, como um nervo
                fulgurante.
                Vou morrer.
                O ouro está perto.


Soneto de Eurydice (Sofia de Mello Breyner Andresen)

Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povo terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.

Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.

Carta 109

Os indivíduos perversos fazem mal uns aos outros, tornam-se mutuamente piores, na medida em que desperam a ira, favorecem o mau caráter, enaltecem os prazeres; tais indivíduos são mesmo tanto mais nocivos quanto mais partilham os sus vícios e juntam as suas forças maléficas com um objetivo comum. O contrário é igualmente válido: um homem de bem só ode ser útil a outro homem de bem. "De que modo?", perguntarás tu. Transmitir-lhe-á o seu contentamento, reforçará a sua autoconfiança; a contemplação mútua da respetiva tranquilidade fará aumentar em ambos a alegria. Além disso pode ainda proporcionar-lhe o conhecimento de certas matérias, já que mesmo um sábio não pode saber tudo.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Europa (Michel Houellebecq)

De um modo geral, vivia-se um período ideologicamente estranho, em que qualquer um na Europa parecia convencido de que o capitalismo estava condenado, e até condenado a breve prazo, de que ele vivia os seus derradeiros anos, apesar de os partidos da extrema esquerda não conseguirem seduzir mais que a sua clientela habitual de masoquistas recalcitrantes. Parecia ter-se espalhado sobre os espiritos um véu de cinzas.


terça-feira, 20 de março de 2012

Todas as cartas de amor são ridículas (Álvaro de Campos)


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Carta 101


Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando não se é sequer senhor do dia seguinte! Como são insensatos todos quantos formulam esperanças a longo prazo: hei-de comprar, hei-de construir, hei-de emprestar dinheiro e cobrá-lo com juros, hei-de fazer carreira na política - e logo me guardarei para a vida privada quando estiver velho, mas bem provido de meios! ... Podes crer no que te digo: mesmo os favorecidos da fortuna carecem de segurança. Ninguém deve fazer projectos para o futuro, pois mesmo o que nós seguramos nos escapa das mãos, mesmo a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe. O tempo escoa-se segundo uma lei racional, mas obscura para nós; que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei da natureza se para mim reina a incerteza?

segunda-feira, 19 de março de 2012

Carta 98

Esta disposição de espírito consegue-se pensando na instabilidade da vida humana antes de a experiemtarmos em nós, olhando para os filhos, a mulher, os bens como algo que não possuiremos para sempre, e evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que deixemos de os possuir. Será a ruína do espirito andarmos ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça,. sempre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satisfação nos acompanhará até ao último dia; assim, nunca conseguiremos repouso e, na expetativa do que há-de vir, deixaremos de aproveitar o presente. Situam-se, de facto, ao mesmo nível a dor por algo perdido e o receio de o perder.

sábado, 17 de março de 2012

Carta 94

Quem se vai vestir de púrpura senão para se exibir? Quem usa baixela de ouro para comer sozinho? Quem, estendido sozinho no campo, à sombra de uma árvore, faz estadão de todo o seu luxo? Ninguém se adorna para se autocontemplar, nem sequer para se apresentar diante de alguns amigos e familiares; adequa, sim, o aparato dos seus vícios às dimensões da multidão que o observa! É assim mesmo: se alguém admira ou conhece o objeto das nossas loucuras, ainda mais nos comprazemos nelas. A falta de ocasião para os exibir afastar-nos-á de desejos insensatos. Ambição, luxo, excessos, precisam de um palco: tira-lhes o público, sanarás esses vícios.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Carta 92

O único bem autêntico é aquele que nunca se deteriora. O homem feliz é aquele que nenhuma circunstância inferioriza; que permanece no cume sem outro apoio além de si mesmo, pois quem se sustenta com o auxílio dos outros está sujeito a cair. Se assim não fosse, começariam a ter ascendente sobre nós coisas que nos são exteriores. Haverá alguém que deseje estar na dependência da fortuna? Qual o homem de bom senso que se envaidece do que não lhe pertence? A felicidade não é mais do que a segurança e a tranquilidade permanentes. Quem no-las proporciona é a grandeza de alma, bem como a constante perseverança na correção das nossas ideias. Os meios de atingir este estado estão na plena consideração da verdade; em observarmos sempre nas nossas ações a ordem, a moderação, a moralidade, a inocência e a benevolência de uma vontade sempre atenta à razão, nunca desta se apartando, digna ao mesmo tempo de amor e de admiração.

domingo, 11 de março de 2012

Escavação (Mario de SÁ-CARNEIRO)

Numa ansia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh'alma perdida não repousa.
Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente á força de sonhar…
Mas a vitória fulva esvai-se logo…
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo…
—Onde existo que não existo em mim?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um cemiterio falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bôcas esmagadas—
Tudo outro espasmo que principio ou fim…

sábado, 10 de março de 2012

Carta 77

Muitas vezes sucede, de facto, que deveriamos morrer e não queremos, ou que morremos mesmo sem o querer! Não há alguém tão estupido a ponto de ignorar que, mais tarde ou mais cedo, há-de morrer; no entanto, quando a morte se aproxima, as pessoas vacilam, tremem, choram. Não ter parece o cúmulo da imbecilidade alguém chorar  por não ter vivido mil anos atrás? Pois não é menos imbecil alguém que chore por já não viver daqui a mil anos. As situações são idênticas: não existiremos no futuro, tal como não existimos no passado; um e outro espaço de tempo ser-nos-á alheio. Tu foste projetado para este ponto de tempo: por muito que o alargues, até quando poderás alargáa-lo? Porque choras? Por que anseias? tudo será em vão:

Não esperes alterar com preces o destino fixado pelos deuses!

sexta-feira, 9 de março de 2012

Carta 49

Tantos períodos num tão exíguo espaço de tempo! Ainda há pouco me despedi de ti quando partiste. Este "há pouco", contudo, representa uma boa parte da nossa curta existência, da qual, não o esqueçamos, em breve nos veremos privados. Habitualemte não me parecia tão veloz a passagem do tempo; agora, porém, parece-me incrivelmente rápida, talvez porque sinto aproximar-se o fim, talvez porque passei a dar-lher atenção e a avaliar o desgaste que em mim provoca. Por isso mesmo me causa indignação ver como as pessoas gastam em futilidades a maior parte de uma vida que, mesmo dispendida com a maior parcimónia, não seria bastante para as coisas essenciais.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Carta 44

Toda a gente ambiciona ter uma vida feliz; porque sucede então que quase todos falham o alvo? Pelo facto de se tornar por felicidade o que não passa de um meio para atingir; por isso, quanto mais a buscam, mais dela se afastam. O cúmulo da felicidade consiste numa perfeita segurança, numa inabalável confiança no seu valor; ora o que as pessoas fazem é arranjar motivos de preocupação, é percorrer a traiçoeira estrada da vida ajoujadas de pesados fardos.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Carta 70

Há homens a quem a vida conduziu rapidamente ao termo a que, mesmo relutantemente, haviam um dia de chegar; para outros, contudo, a vida não passa de uma interminável maceração. Ora, como tu bem sabes, a vida não é um bem que se deve conservar a todo o custo: o que importa não é estar vivo, mas sim viver uma vida digna! Por isso mesmo, o sábio prolongará a sua vida enquando dever, e não enquanto puder.

sábado, 3 de março de 2012

É uma Tolice Desculpar um Falhado (Miguel Torga, Diário)

É uma tolice desculpar um falhado com argumentos de meio, época, saúde, idade, etc. O verdadeiro triunfador cria as condições da sua realização. Que se importa a gente com as doenças de Beethoven, e que pesam elas na sua obra? A natureza, quando dá génio, dá forças, tempo e coragem para vencer todos os obstáculos que o não deixem desabrochar. Não há malogrados. O único argumento a favor da sua existência é a idade. Ora na idade de malogrados morreram Keats, Cesário e Rafael...
Construir uma vida e uma obra parece ter sido sempre a façanha dos grandes. E se Goethe precisou de oitenta anos para se cumprir, Shelley pediu um prazo mais curto à natureza. O que tinha a dizer, dizia-se mais depressa...

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sermão de Stº. António aos Peixes

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job quando dizia: "Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?". Quereis um Job destes?



Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Os Lusíadas (V,13)

Ali o mui grande reino está de Congo,
Por nós já convertido à fé de Cristo,
Por onde o Zaire passa, claro e longo,
Rio pelos antigos nunca visto.
Por este largo mar enfim me alongo
Do conhecido pólo de Calisto,
Tendo o término ardente já passado,
Onde o meio do mundo é limitado.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

o remorso de baltazar serapião (valter hugo mãe)

a cerimónia não teve grande ciência, abençoados pela confissão como estavamos, pedidos pelos pais para nos casarmos, nada se apoquentava com nosso acto e só praticá-lo era preciso. por isso foram ditas as palavras sem grande tempo e já a arca da ermesinda tinha sido levada para nossa casa tão preparada, e era como o seu enxoval ficaria guardado para nosso uso, muito dele para mais tarde, quando me autonomizasse verdadeiramente da casa dos meus pais e não estivesse a disfarçar o espaço que cabia aos animais. e era como dizia o aldegundes, revoltado com a expulsão da sarga haviam de ser vocês, os dois, a peidar e a cagar o suficiente para aquecer a casa à noite se isso compete por natureza ao gado que se tem.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Infância

- Perdão, queira desculpar …

Um menino, correndo desenfreadamente, chocou comigo na saída dum Parque Infantil. Corria em direção a seus pais que o esperavam do outro lado da rua. Depois de o levantar, regressei a um passado infantil, que foi muito feliz. Como parque tínhamos a rua onde ficávamos invariavelmente empoeirados ou enlameados, caso chovesse. Jogávamos à bola, brincávamos aos cowboys, criávamos castelos imaginários e lutávamos com espadas como o Robin dos Bosques. Nas matinés de televisão, visionávamos as séries naif Bonanza ou A Casa da Pradaria. Sinto saudades desses tempos …

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Vidas (Rimbaud)

Num esconso onde me fecharam aos doze anos conheci o mundo, ilustrei a comédia humana. Num celeiro aprendi história. Numa gala noturna duma cidade do Norte, vi todas as mulheres dos antigos pintores. Numa velha passagem de Paris ensinaram-me as ciências clássicas. Numa incursão magnífica, assistido por todo o Oriente, completei minha obra imensa e fiz a minha insigne retirada. Fermentei o meu sangue. Fui-me restituído. Que de tudo isto nem a ideia fique. Sou realmente de além-túmulo, e nada de comissões.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O Horizonte (Patrick Modiano)

Sentia-se cansado por ter caminhado tanto. Mas, por uma vez, experimentava um sentimento de serenidade, com a certeza de ter regressado ao local exato do qual partira um dia, do mesmo sítio, à mesma hora e da mesma estação, como dois ponteiros que se unem no mostrador de um relógio ao meio-dia. Pairava no ar um semitorpor enquanto se deixava embalar pelos gritos das crianças na praceta e pelo murmúrio das conversas à sua volta. Sete horas da noite. Rod Miller dissera-lhe que ela deixava a livraria aberta até tarde.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Luanda


A primeira vista é sublime; os ramos vivos das palmeiras em frente a casa, quase entram pela janela adentro. Os mamoeiros são poiso para muitas aves canoras, especialmente ruidosas às primeiras horas da manhã. As zungueiras passam na rua com os seus pregões de “cachucho é … carapau é …”. O aroma das acácias mistura-se, por vezes com o da relva cortada. O estádio ocupa o centro do quarteirão. O relvado distingue-se do betão envolvente. As novas Torres da Baixa, mais ao longe, com suas fachadas envidraçadas, espelham o azul do céu e da baía.

Padrão (Fernando Pessoa)

O esforço é grande e o homem é pequeno
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
este padrão ao pé do areal moreno
e para deante naveguei.
 
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por fazer é só com Deus.
 
E ao immenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é portuguez.
 
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar

Padrão deixado por Diogo Cão na 1ª viagem ao Reino do Congo (actual Soyo)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Pregal

O nevoeiro foi-se dissipando lentamente e começam a observar-se algumas formas curiosas por entre o casario; um lago aqui, uma árvore acolá, parecia um teatro de sombras, cujos actores eram as nuvens. Indiferentes a este espectáculo singular, passavam, nos caminhos, as retardatárias a caminho da igreja. Por entre as poças de chuva, apertavam o passo, umas regressadas do campo, outras mais entretidas na lida da casa.

1º sonho de Calvino (Gonçalo M. Tavares)

Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar, enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessárias para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.

Antes da Ponte Rio-Niterói (Clarice Lispector)

Pois é.
Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, quer dizer, da filha do amante e todos sabiam, e a mulher do médico pendurava uma toalha branca na janela significando que o amante podia entrar. Ou era toalha de cor e ele não entrava.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Governo, 1922

"Raios partam o Governo mailos governados, raios partam tanto tributo com que a gente de bem tem de ustir para andar para aí meia dúzia de figurões, de costa direita, mais farófias que pitos calçudos! Raios partam! O governo é um corpo da guarda que nos defende ou é a quadrilha do olho vivo que não faz senão roubar? Quem lhe encomenda o sermão?"

António Malhadinhas

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Madame Lambertin

Madame Lambertin passava todas as manhãs à porta de minha casa. Da janela do meu quarto, habituei-me a vê-la atravessar a rua todos os dias; tornara-se numa rotina. Em dias de sol, com a sua sombrinha amarela e roupa atrevida a condizer; nos dias de chuva, guarda-chuva negro e roupa a imitar uma viuvez imaginária. No regresso, o mesmo de sempre: uma cabazada de garrafas de Gueze. Esta peregrinação diária à brasserie da esquina, mudaram a tez viva desta trintona e o seu corpo anteriormente roliço já dava mostras de alguma secura.

O Som e a Fúria

Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas. Foram até onde estava a bandeira eu segui-os pela cerca fora. O Luster andava à cata na relva, perto da árvore das flores. Tiraram a bandeira e deram uma tacada. Depois voltaram a pôr a bandeira no lugar e dirigiram-se para o planalto; um dava tacadas e o outro dava tacadas. Depois continuaram e eu segui-os pela cerca fora. O Luster afastou-se da árvore das flores e continuámos pela cerca fora e eles pararam e nós parámos e eu espreitei pelos intervalos da cerca enquanto o Luster andava à cata na relva.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O Malhadinhas (Aquilino Ribeiro)

Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté nos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra - eu cá nunca me avistei com ele - mas a verdade é que a neve vinha, com os Santos e as cerejas quando largam do ovo os perdigotos. Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer.

Filosofia (Séneca)

A primeira coisa que a filosofia nos garante é o senso comum, a humanidade, o espírito de comunidade, coisas de cuja prática  nos afastará uma vida demasiado diferente. Devemos precaver-nos, não vão os nossos atos, que desejamos merecedores de admiração, tornar-se antes ridículos e odiosos.