quinta-feira, 29 de março de 2012

Aulo Gélio sobre Séneca


Já estou a ficar cansado de Séneca. Ache quem quiser que Séneca merece ser lido e estudado pelos jovens, ele que achou por bem comparar a gravidade e o tom dos autores arcaicos com os leitos de Sotérico, isto é, com moveis destituidos de beleza, já passados de moda, monos de que ninguém gosta. Apesar de tudo, vale a pena citar alguma coisa, pouca, de Séneca digna de menção, como é aquele seu excelente dito dirigido a um avarento, ambicioso até mais não, atormentado pela sede de dinheiro: "Que importam os bens que possuis se muito mais numerosos são aqueles que não possuis?"



segunda-feira, 26 de março de 2012

Cobra (Herberto Helder)


Eu iria até ao centro onde flutua a constelação
                 da dança, com as labaredas
                 a mergulhar
em baixo. Ou à frente, os relâmpagos do corpo culminando.
Toco-lhe as campânulas quando os balcões
                 se debruçam na atmosfera,
                 e as colinas irradiam com os astros
                 cravados, e desorientam
os olhos. A minha idade escapa-se de um lado
para o outro, sob os dedos, como um nervo
                fulgurante.
                Vou morrer.
                O ouro está perto.


Soneto de Eurydice (Sofia de Mello Breyner Andresen)

Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povo terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.

Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.

Carta 109

Os indivíduos perversos fazem mal uns aos outros, tornam-se mutuamente piores, na medida em que desperam a ira, favorecem o mau caráter, enaltecem os prazeres; tais indivíduos são mesmo tanto mais nocivos quanto mais partilham os sus vícios e juntam as suas forças maléficas com um objetivo comum. O contrário é igualmente válido: um homem de bem só ode ser útil a outro homem de bem. "De que modo?", perguntarás tu. Transmitir-lhe-á o seu contentamento, reforçará a sua autoconfiança; a contemplação mútua da respetiva tranquilidade fará aumentar em ambos a alegria. Além disso pode ainda proporcionar-lhe o conhecimento de certas matérias, já que mesmo um sábio não pode saber tudo.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Europa (Michel Houellebecq)

De um modo geral, vivia-se um período ideologicamente estranho, em que qualquer um na Europa parecia convencido de que o capitalismo estava condenado, e até condenado a breve prazo, de que ele vivia os seus derradeiros anos, apesar de os partidos da extrema esquerda não conseguirem seduzir mais que a sua clientela habitual de masoquistas recalcitrantes. Parecia ter-se espalhado sobre os espiritos um véu de cinzas.


terça-feira, 20 de março de 2012

Todas as cartas de amor são ridículas (Álvaro de Campos)


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Carta 101


Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando não se é sequer senhor do dia seguinte! Como são insensatos todos quantos formulam esperanças a longo prazo: hei-de comprar, hei-de construir, hei-de emprestar dinheiro e cobrá-lo com juros, hei-de fazer carreira na política - e logo me guardarei para a vida privada quando estiver velho, mas bem provido de meios! ... Podes crer no que te digo: mesmo os favorecidos da fortuna carecem de segurança. Ninguém deve fazer projectos para o futuro, pois mesmo o que nós seguramos nos escapa das mãos, mesmo a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe. O tempo escoa-se segundo uma lei racional, mas obscura para nós; que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei da natureza se para mim reina a incerteza?

segunda-feira, 19 de março de 2012

Carta 98

Esta disposição de espírito consegue-se pensando na instabilidade da vida humana antes de a experiemtarmos em nós, olhando para os filhos, a mulher, os bens como algo que não possuiremos para sempre, e evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que deixemos de os possuir. Será a ruína do espirito andarmos ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça,. sempre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satisfação nos acompanhará até ao último dia; assim, nunca conseguiremos repouso e, na expetativa do que há-de vir, deixaremos de aproveitar o presente. Situam-se, de facto, ao mesmo nível a dor por algo perdido e o receio de o perder.

sábado, 17 de março de 2012

Carta 94

Quem se vai vestir de púrpura senão para se exibir? Quem usa baixela de ouro para comer sozinho? Quem, estendido sozinho no campo, à sombra de uma árvore, faz estadão de todo o seu luxo? Ninguém se adorna para se autocontemplar, nem sequer para se apresentar diante de alguns amigos e familiares; adequa, sim, o aparato dos seus vícios às dimensões da multidão que o observa! É assim mesmo: se alguém admira ou conhece o objeto das nossas loucuras, ainda mais nos comprazemos nelas. A falta de ocasião para os exibir afastar-nos-á de desejos insensatos. Ambição, luxo, excessos, precisam de um palco: tira-lhes o público, sanarás esses vícios.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Carta 92

O único bem autêntico é aquele que nunca se deteriora. O homem feliz é aquele que nenhuma circunstância inferioriza; que permanece no cume sem outro apoio além de si mesmo, pois quem se sustenta com o auxílio dos outros está sujeito a cair. Se assim não fosse, começariam a ter ascendente sobre nós coisas que nos são exteriores. Haverá alguém que deseje estar na dependência da fortuna? Qual o homem de bom senso que se envaidece do que não lhe pertence? A felicidade não é mais do que a segurança e a tranquilidade permanentes. Quem no-las proporciona é a grandeza de alma, bem como a constante perseverança na correção das nossas ideias. Os meios de atingir este estado estão na plena consideração da verdade; em observarmos sempre nas nossas ações a ordem, a moderação, a moralidade, a inocência e a benevolência de uma vontade sempre atenta à razão, nunca desta se apartando, digna ao mesmo tempo de amor e de admiração.

domingo, 11 de março de 2012

Escavação (Mario de SÁ-CARNEIRO)

Numa ansia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh'alma perdida não repousa.
Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente á força de sonhar…
Mas a vitória fulva esvai-se logo…
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo…
—Onde existo que não existo em mim?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um cemiterio falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bôcas esmagadas—
Tudo outro espasmo que principio ou fim…

sábado, 10 de março de 2012

Carta 77

Muitas vezes sucede, de facto, que deveriamos morrer e não queremos, ou que morremos mesmo sem o querer! Não há alguém tão estupido a ponto de ignorar que, mais tarde ou mais cedo, há-de morrer; no entanto, quando a morte se aproxima, as pessoas vacilam, tremem, choram. Não ter parece o cúmulo da imbecilidade alguém chorar  por não ter vivido mil anos atrás? Pois não é menos imbecil alguém que chore por já não viver daqui a mil anos. As situações são idênticas: não existiremos no futuro, tal como não existimos no passado; um e outro espaço de tempo ser-nos-á alheio. Tu foste projetado para este ponto de tempo: por muito que o alargues, até quando poderás alargáa-lo? Porque choras? Por que anseias? tudo será em vão:

Não esperes alterar com preces o destino fixado pelos deuses!

sexta-feira, 9 de março de 2012

Carta 49

Tantos períodos num tão exíguo espaço de tempo! Ainda há pouco me despedi de ti quando partiste. Este "há pouco", contudo, representa uma boa parte da nossa curta existência, da qual, não o esqueçamos, em breve nos veremos privados. Habitualemte não me parecia tão veloz a passagem do tempo; agora, porém, parece-me incrivelmente rápida, talvez porque sinto aproximar-se o fim, talvez porque passei a dar-lher atenção e a avaliar o desgaste que em mim provoca. Por isso mesmo me causa indignação ver como as pessoas gastam em futilidades a maior parte de uma vida que, mesmo dispendida com a maior parcimónia, não seria bastante para as coisas essenciais.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Carta 44

Toda a gente ambiciona ter uma vida feliz; porque sucede então que quase todos falham o alvo? Pelo facto de se tornar por felicidade o que não passa de um meio para atingir; por isso, quanto mais a buscam, mais dela se afastam. O cúmulo da felicidade consiste numa perfeita segurança, numa inabalável confiança no seu valor; ora o que as pessoas fazem é arranjar motivos de preocupação, é percorrer a traiçoeira estrada da vida ajoujadas de pesados fardos.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Carta 70

Há homens a quem a vida conduziu rapidamente ao termo a que, mesmo relutantemente, haviam um dia de chegar; para outros, contudo, a vida não passa de uma interminável maceração. Ora, como tu bem sabes, a vida não é um bem que se deve conservar a todo o custo: o que importa não é estar vivo, mas sim viver uma vida digna! Por isso mesmo, o sábio prolongará a sua vida enquando dever, e não enquanto puder.

sábado, 3 de março de 2012

É uma Tolice Desculpar um Falhado (Miguel Torga, Diário)

É uma tolice desculpar um falhado com argumentos de meio, época, saúde, idade, etc. O verdadeiro triunfador cria as condições da sua realização. Que se importa a gente com as doenças de Beethoven, e que pesam elas na sua obra? A natureza, quando dá génio, dá forças, tempo e coragem para vencer todos os obstáculos que o não deixem desabrochar. Não há malogrados. O único argumento a favor da sua existência é a idade. Ora na idade de malogrados morreram Keats, Cesário e Rafael...
Construir uma vida e uma obra parece ter sido sempre a façanha dos grandes. E se Goethe precisou de oitenta anos para se cumprir, Shelley pediu um prazo mais curto à natureza. O que tinha a dizer, dizia-se mais depressa...