quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sermão de Stº. António aos Peixes

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job quando dizia: "Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?". Quereis um Job destes?



Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Os Lusíadas (V,13)

Ali o mui grande reino está de Congo,
Por nós já convertido à fé de Cristo,
Por onde o Zaire passa, claro e longo,
Rio pelos antigos nunca visto.
Por este largo mar enfim me alongo
Do conhecido pólo de Calisto,
Tendo o término ardente já passado,
Onde o meio do mundo é limitado.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

o remorso de baltazar serapião (valter hugo mãe)

a cerimónia não teve grande ciência, abençoados pela confissão como estavamos, pedidos pelos pais para nos casarmos, nada se apoquentava com nosso acto e só praticá-lo era preciso. por isso foram ditas as palavras sem grande tempo e já a arca da ermesinda tinha sido levada para nossa casa tão preparada, e era como o seu enxoval ficaria guardado para nosso uso, muito dele para mais tarde, quando me autonomizasse verdadeiramente da casa dos meus pais e não estivesse a disfarçar o espaço que cabia aos animais. e era como dizia o aldegundes, revoltado com a expulsão da sarga haviam de ser vocês, os dois, a peidar e a cagar o suficiente para aquecer a casa à noite se isso compete por natureza ao gado que se tem.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Infância

- Perdão, queira desculpar …

Um menino, correndo desenfreadamente, chocou comigo na saída dum Parque Infantil. Corria em direção a seus pais que o esperavam do outro lado da rua. Depois de o levantar, regressei a um passado infantil, que foi muito feliz. Como parque tínhamos a rua onde ficávamos invariavelmente empoeirados ou enlameados, caso chovesse. Jogávamos à bola, brincávamos aos cowboys, criávamos castelos imaginários e lutávamos com espadas como o Robin dos Bosques. Nas matinés de televisão, visionávamos as séries naif Bonanza ou A Casa da Pradaria. Sinto saudades desses tempos …

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Vidas (Rimbaud)

Num esconso onde me fecharam aos doze anos conheci o mundo, ilustrei a comédia humana. Num celeiro aprendi história. Numa gala noturna duma cidade do Norte, vi todas as mulheres dos antigos pintores. Numa velha passagem de Paris ensinaram-me as ciências clássicas. Numa incursão magnífica, assistido por todo o Oriente, completei minha obra imensa e fiz a minha insigne retirada. Fermentei o meu sangue. Fui-me restituído. Que de tudo isto nem a ideia fique. Sou realmente de além-túmulo, e nada de comissões.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O Horizonte (Patrick Modiano)

Sentia-se cansado por ter caminhado tanto. Mas, por uma vez, experimentava um sentimento de serenidade, com a certeza de ter regressado ao local exato do qual partira um dia, do mesmo sítio, à mesma hora e da mesma estação, como dois ponteiros que se unem no mostrador de um relógio ao meio-dia. Pairava no ar um semitorpor enquanto se deixava embalar pelos gritos das crianças na praceta e pelo murmúrio das conversas à sua volta. Sete horas da noite. Rod Miller dissera-lhe que ela deixava a livraria aberta até tarde.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Luanda


A primeira vista é sublime; os ramos vivos das palmeiras em frente a casa, quase entram pela janela adentro. Os mamoeiros são poiso para muitas aves canoras, especialmente ruidosas às primeiras horas da manhã. As zungueiras passam na rua com os seus pregões de “cachucho é … carapau é …”. O aroma das acácias mistura-se, por vezes com o da relva cortada. O estádio ocupa o centro do quarteirão. O relvado distingue-se do betão envolvente. As novas Torres da Baixa, mais ao longe, com suas fachadas envidraçadas, espelham o azul do céu e da baía.

Padrão (Fernando Pessoa)

O esforço é grande e o homem é pequeno
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
este padrão ao pé do areal moreno
e para deante naveguei.
 
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por fazer é só com Deus.
 
E ao immenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é portuguez.
 
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar

Padrão deixado por Diogo Cão na 1ª viagem ao Reino do Congo (actual Soyo)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Pregal

O nevoeiro foi-se dissipando lentamente e começam a observar-se algumas formas curiosas por entre o casario; um lago aqui, uma árvore acolá, parecia um teatro de sombras, cujos actores eram as nuvens. Indiferentes a este espectáculo singular, passavam, nos caminhos, as retardatárias a caminho da igreja. Por entre as poças de chuva, apertavam o passo, umas regressadas do campo, outras mais entretidas na lida da casa.

1º sonho de Calvino (Gonçalo M. Tavares)

Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar, enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessárias para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.

Antes da Ponte Rio-Niterói (Clarice Lispector)

Pois é.
Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, quer dizer, da filha do amante e todos sabiam, e a mulher do médico pendurava uma toalha branca na janela significando que o amante podia entrar. Ou era toalha de cor e ele não entrava.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Governo, 1922

"Raios partam o Governo mailos governados, raios partam tanto tributo com que a gente de bem tem de ustir para andar para aí meia dúzia de figurões, de costa direita, mais farófias que pitos calçudos! Raios partam! O governo é um corpo da guarda que nos defende ou é a quadrilha do olho vivo que não faz senão roubar? Quem lhe encomenda o sermão?"

António Malhadinhas

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Madame Lambertin

Madame Lambertin passava todas as manhãs à porta de minha casa. Da janela do meu quarto, habituei-me a vê-la atravessar a rua todos os dias; tornara-se numa rotina. Em dias de sol, com a sua sombrinha amarela e roupa atrevida a condizer; nos dias de chuva, guarda-chuva negro e roupa a imitar uma viuvez imaginária. No regresso, o mesmo de sempre: uma cabazada de garrafas de Gueze. Esta peregrinação diária à brasserie da esquina, mudaram a tez viva desta trintona e o seu corpo anteriormente roliço já dava mostras de alguma secura.

O Som e a Fúria

Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas. Foram até onde estava a bandeira eu segui-os pela cerca fora. O Luster andava à cata na relva, perto da árvore das flores. Tiraram a bandeira e deram uma tacada. Depois voltaram a pôr a bandeira no lugar e dirigiram-se para o planalto; um dava tacadas e o outro dava tacadas. Depois continuaram e eu segui-os pela cerca fora. O Luster afastou-se da árvore das flores e continuámos pela cerca fora e eles pararam e nós parámos e eu espreitei pelos intervalos da cerca enquanto o Luster andava à cata na relva.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O Malhadinhas (Aquilino Ribeiro)

Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté nos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra - eu cá nunca me avistei com ele - mas a verdade é que a neve vinha, com os Santos e as cerejas quando largam do ovo os perdigotos. Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer.

Filosofia (Séneca)

A primeira coisa que a filosofia nos garante é o senso comum, a humanidade, o espírito de comunidade, coisas de cuja prática  nos afastará uma vida demasiado diferente. Devemos precaver-nos, não vão os nossos atos, que desejamos merecedores de admiração, tornar-se antes ridículos e odiosos.